Minha flor de botequim nunca teve um jarro seguro pra poder descansar, desse modo o hiato se fez, um ato doloroso sem dores, nos abraços perdidos, farrapo de um outro qualquer. Das sobras de um ontem mal vivido, trapos desolados, despida despedida de um barco à deriva. Perdeste a rota em caminhos suntuosos desperdiçando a mão que te acolheu, meu bravo recital autoral, monumental... És o grito e o sino de um sentimento qualquer, o alarde embalsamado, um germe doente abrasivo nas lembranças de maio atravessados de janeiro a abril. Um lugar de asfaltos invisíveis feito um hotel vazio, sombrio... São vagas, vagarosas lembranças de uma madrugada traída que representavam num grito um vestido rasgado do prazer mal amado, convergente a mero gosto indigesto do sabor, entre pazes distribuídas, frases diluídas em prazeres ocultos onde moram as traças famintas do tempo... Choraste em meu peito sem lacrimejar, do soco em minha lente posto no rosto a lembrança de quase nada, do silêncio que ficou por dizer... Acordo tolhido pelas manhãs, sem noites, com frio, sem recordações... Hoje trago em meu peito a dor deslocada de um vulto alvo e a voz da despedida repentina, sonhos palpáveis diante da queda súbita que me traz rancor na boca que tem gosto de sangue. Foste apaixonada pelo desprezo de um peito desfeito que um dia se refez em atos emancipados da paixão, sem fantasia contida na rejeição de um passado acanhado e oblíquo. Perdoaria tuas acusações, mas isso não perpetuaria teu nome - mulher, os filhos preditos em pretéritos, teus dias sem glórias, do afago molhado na cama sem sono, um gozo repentino na procura dos beijos clementes por bem ou por mal, amais, e eu tenho paz, a quem nunca mais permitirei sentir tamanha descrição e recordação... Afogo meus atos impuros, imprevisíveis senhores do dia em que me obrigam ser um contundente sem coração sanguíneo, premeditando certos bocejos, acalentando os dias bordados sem a púrpura cor, sem validação sincera, honesta, concreta. Recordo da casa redesenhada nos dias sem sol e sem acalento... Dos dias sem amizades, meus pensamentos vagos correndo sem roupa entre os cômodos me dando de graça a tua imagem diurna, varando noites soturnas, em versos sem gestos, ocupando as sagradas mensagens dos teus olhos vazios, duros versos que chegam ao fim, galgados na aurora de uma mesa farta de frases magras. A destreza me invade agora, me julgas e até o fim dessas lembranças me julgarás, sem ponto cego na partida sem vinda, conforme predito em tua jurisdição, um corpo perdido e de peito estancado, sem afeto, paralisado sem enunciação, enciumados enunciados voláteis... Na renúncia ao retorno do mesmo verso esquecido - teu nome mulher, que entre elas me trazem salvação - a dádiva de me libertar dessa tua imagem amarelada...
Da pele ressecada e escamada surgem novas moradas, fendas fundam nas profundas camadas da alma deste que vos fala.
Catalisado pelos pensamentos escolásticos neo-expressionistas que fatalmente morrem sem ganhar um corpo concreto, estanco por falta de criação.
Nessa falta sou a criatura deflagrada, um ser aquático morrendo de sede, flutuando num observatório populacional de seres estranhos.
O corpo seco segue dormente, a língua mordiscada pela falta de prazer, presa entre os caninos, olhos estáticos – sem reflexos, um coração quase parado em lentas contrações e a respiração cansada descansando sobre a tela de uma paisagem bucólica, arredio – expulso da carcaça fanática desse espírito surdo.
Amordaçado pela angustia de representar um objeto vivo, inacabado e incabível no próprio terno desbotado corpóreo, repito inúmeros pensamentos criptografados na tentativa de calcular esse tempo insustentável arrastado por ponteiros preguiçosos das horas.
Um movimento paranoico do pensamento se repete, ideias fixas – compulsivas em busca por respostas que dominem a ordem dos desejos legítimos, do paradoxo verbal a um teorema simples. Na anti-simbologia semiótica das representações inverossímeis, a verborragia de meus versos aprisionados no fundo da garganta se desestabilizam ocultando-me em um esconderijo mudo – o refúgio alheio das mariposas.
Nesse tempo esquecido, naufragaram as lembranças fragmentadas, as ordens das coisas irreais desvariam a partir de uma semiótica ilusória, do movimento que é imprevisível, um jogo de espelhos esféricos, o corpo não aparenta mais a forma real. A temporalidade aqui tentando ser descritiva tem a aparência côncava, complexa, e talvez sempre tenha sido assim.
Os espaços são nichos caóticos, pequenos espaços ilúcidos, uma estruturação sistemática em decadência, impactados pelos objetos rotacionais externos influenciados pelos movimentos internos, inerentes ao homem.
No momento presente a autoimagem materializada se encontra modelada em argamassa aerada, arreigada ao mesmo seio que minhas mãos euforicamente apalpavam em algum momento vivido anteriormente, porém desconfio que seja apenas um desejo poético antológico.
As projeções transformam-se em moléculas anfipáticas recaídas na beleza contínua, do que é etéreo, sublimadas às camadas contingentes de um corpo estereofônico.
Nesse provável estado inconsciente a escuridão vulgariza-se entre as sombras voluptuosas dos dedos das mãos disformes – sem identificações perenes, pernas parafraseiam indecentemente sobre o ralo e os pelos que caem flutuando sobre o bafo quente do ar transpondo-me a radiação gama.
Desmaterializado do estado predito de consciência, o qual se fez necessário a construção de uma barreira inteligível entre o operador e a fonte, de modo que o esteticismo anacrônico por sua vez restabelecera parte do sistema coaxial com mundo externo enquanto as demais funções são outorgados pela rainha decaída sobre o tabuleiro de xadrez revelando por fim as notações algébricas e seus experimentos epígenos, simbolizando na cadeia competitiva da prole pequenos signos – partículas de DNA concatenando em direções opostas ao ânodo condutor e as caóticas energias migratórias em direção ao cátodo catalisador.
A imagem agora acústica ecoa seus primários signos em um laço arbitrário dos falhos sentidos que nos foi originado, em teoria semântica, seus postulados, subjetivos conceitos de sentidos e referências são ainda mais abrangentes e requer mais aprofundamento nas camadas que constituem o movimento dos seres, porém aqui não me cabe explicar o que seja a falta ou a demasia sistêmica, apenas o que teoricamente acredito ser realidade estrutural, coletivo funcional e a singular estética da narrativa.
Sou formatado no presente momento contemplativo como uma construção perceptiva dos outros objetos fora de mim, nos quais foram designados segundo rege o materialismo mítico e a coletividade limitada das projeções ideais.
Novos seres emergem da água, condensados da imagem mental dos que aqui comigo continuam a cair num vácuo estático.
O tempo em sua espécie dinâmica desagrega os ponteiros das horas, intervém a alquimia dos encontros provocando nebulosas num céu pueril, proliferando seus novos seres em conotações defensivas.
A nova sociedade criada regerá esse novo mundo, apresentada como “A MÁQUINA LIMBUS” tendo como missão operacional exterminar de seu sistema a subespécie conhecida por Homo Sapiens Sapiens (HSS), pertencente a cadeia de parasitas macrobióticos.
A pulsão autodestrutiva designa o que é real nesse novo implante substancial.
Utilizando um método infeccioso, um novo vírus se disseminará e será conhecida como PSYCHIC DESVARIARE.
Transmitido por meio do toque, o vírus neutraliza e destrói a obra psíquica do sujeito, arquivos da existência singular, vivenciadas nas experiências do passado e do presente.
Inicialmente o indivíduo infectado passará por processos de falhas de memória, e este será compensado por uma overdose de libido no Sistema Nervoso Central (SNC), aumentando o apetite sexual, causando uma vontade incontrolável de tocar o outro, de forma que os processos dinâmicos consistirão em energias variantes que trafegam na corrente sanguínea e se instalam no córtex cerebral, multiplicando-se e colonizando todas as regiões cerebrais.
Após chegar ao ponto programado, o vírus se transformará em uma espécie de molusco, abraçando toda a estrutura fisiológica do cérebro com seus tentáculos sufocando-a. As ventosas desse suposto molusco têm a função sanguessuga de absorver todas as informações contidas nas memórias, restando apenas um lugar vazio, escuro e sem lembranças.
A doença evolui em um espaço curto de tempo, disseminando por todo o corpo em poucas semanas, levando o sujeito a parasitar sem lembranças, vagando pela via-férrea da existência.
O infectado aparentemente tem a sensação de viver em um mundo feliz – o paraíso, acompanhado de sensações interruptas de liberdade, sofrendo uma vontade compulsiva de abraçar os outros seres, por estar em êxtase, e por sua vez esse desejo e vontade será crescente em cada estágio da doença – uma catarse hormonal.
Enquanto isso as elucubrações dos não infectados viram notícias dos jornais de todos os dias. O que estaremos a ler são bulas, contendo pelo menos cento e quarenta páginas de novas fórmulas, métodos e medicamentos.
Viveremos em um mundo caótico, repleto de pessoas vagando pelas ruas, cadáveres debruçados nos jardins, nas ruas e avenidas. Pessoas suicidas se atirando das janelas dos prédios e apartamentos, outros dependurados em monumentos fálicos – históricos. Milhares de humanos despidos vagando pelas ruas em direção ao mar, selvagerias de línguas, bocas, pele, corpo e membros expostos… um prazer coletivo toma conta da sociedade.
Alguns serão encontrados mortos, pela fome e sede, trancafiados em criptas, grutas e oratórios, agarrados a uma cruz ou santos de barro, suplicando por um milagre, esperando um milagreiro.
Entre infectados emotivos, caçadores de prazer e os não infectados em busca por isolamento – sem contato com os outros seres, as máquinas são as únicas imunes que trafegam pelos espaços inóspitos. Um mundo onde as máquinas se tornarão a lei, donos do mundo nessa nova era.
Novos tipos de armamentos auxiliam em defesa dos sobreviventes imunes, porém trabalharão para a nova ordem instaurada pela sociedade das máquinas. A missão é dizimar os seres infectados que se aproximam da base MK-3041, criada para os refugiados – escravos a serviço da ordem e da lei.
Sei que logo vou ficar perdido dentro desse buraco negro onde estou prestes a sucumbir, expurgando todas as lembranças, talvez tudo isso seja apenas um sonho ruim, uma distopia dos meus pensamentos vagos.
Já me sinto doente, com medo da morte, longos dias de insônia me perturbam os pensamentos, delirando imagens de um corredor imenso e escadas que vão sumindo, acompanhados de pessoas estranhas, nas quais nunca vi. Inúmeros transeuntes onde jamais nos encontraríamos ao mesmo tempo nos lugares por onde andei.
Construir realidades alternativas talvez me lançasse a uma rota alternativa, ou à lugares desconhecidos, quem sabe alguém me encontre para um experimento novo, implantando em meu cérebro um microchip gravando assim novas realidades – experiências contínuas, possibilitando assim ser eu um criador e a própria criatura num só corpo, me condicionando ao experimento variado de vivências em diferentes épocas do tempo, enquanto imagino o súbito vírus corroer o que supostamente construí como única realidade nesse mundo, preservando assim no microchip novas projeções reais até que eu seja exterminado enquanto caio nesse buraco negro de esquecimento.
Lançar-me-ei nessa linha tênue a partir de agora.
Apenas me deseje uma boa viagem sonho real.
Um copo com água, um corpo com sede, a mão carcomida bate à porta, pede perdão, um drinque e um cigarro longo sem coesão, trocando em miúdos, partituras improvisadas pelo tempo que se desfazem em notas de contos musicais, a cada átomo de ideia precisa.
Aprisionado pelo silêncio das imagens delirantes, aleatórios escapes de memórias obsoletas, tambores rufam alegoricamente acompanham a sonata de Wagner. Certamente de longe, onde a vista não alcança, é anunciada a ave da sentença breve que finda o dia.
Não sei ao certo, mas tenho a impressão de que meus pés descalços – tamanho, quarenta e um, não caminharão sobre o solo dessa terra até a velhice tardia, ainda que me sobrem dentes para comer as flores no inverno. O tempo talvez seja justo comigo, vou esperar o sol nascer...
- Quem dera fosse eu um germe - um embrião, a parte mais nobre do trigo que dá origem ao alimento, matando a fome dos famintos que vagam pelo deserto.
Pigmentos no tempo, manchas escuras, o movimento das nuvens na visão, moscas volantes por toda parte confundem meu raciocínio, os inúmeros projetos empoeirados, protótipos de uma razão parcialmente cega - fenômenos entópticos. É sabido que o fosfeno se apresenta aqui como um mecanismo de defesa diante dessa realidade insuportável fundando sintomas.
O sangue não circula mais na velocidade que deveria percorrer em meu corpo, sinto uma certa fraqueza, a fraqueza da vontade, nessa falta de sono em que meus olhos se abrem lentamente desgrudando os cílios da remela sólida do tempo anteriormente penado, penalizado pela cegueira desse quarto ilusório. Questiono minha revelia, na irredutível experiência com esse mundo que me dá sustento às pernas, onde me faço existir, no vórtice temporal, meu movimento de extração, do suprassumo das horas que me servem como composição da obra que escrevo, reescrevo, invento, reinvento, conto e reconto inúmeras vezes negando a intenção de ser quem sou quando não estou em mim, ou em você.
Na periferia dos meus pensamentos em expansão a razão se fragmenta, viajando por espaços inócuos da psicosfera.
O movimento anterior se fixava nos processos repetitivos, automaticamente viciados em soberbas alienações destrutivas, desgastavam as engrenagens do raio experiencial, retardando assim o despertar da eterna usura.
Com o esfarelamento da razão reato os meios, retalho a culpa original e a fantasiada de outrora - um doloroso corte do desejo inflamando corpo adentro.
A religação de crenças me salvaria permanentemente num curto processo de transformação - a redenção, do injustificável ao discurso aplaudido e mistificado em um ser santificado.
- Não! Eu não quero santificação, santidade ou sacrários, escapulários amarrados ao meu corpo, me colocando o peso da cruz nos ombros para que eu seja um bicho dócil e não vague pelo mundo feito um animal inundado de desejos impuros...
Desintegro o imperialismo matriz, desarticulo a arte codificada – formas pré-moldadas que não dizem nada sobre mim, reinauguro no discurso alguns fios condutores para entender meu processo, o que aparece para além de mim. São fios que tecem essa fala estética do sublime, linguística diacrônica, escalas diatônicas, bizantina - donde as imagens partem das ideias, não mais da observação platônica. Abstenho-me por hora de uma ideia central, funcional, mecanicista, metodológica e mercantilista.
Aprofundemos camada por camada, que surjam novos semblantes dos corpos meneando espaços ilógicos, nos coloquemos para fora de um tempo preciso, o alto renascimento – no cume da arte, na busca por uma visão mais completa do movimento com as coisas, na fusão e perfusão.
A decoupage da alma está na pele, na carne, nervos, ossos... Nas vísceras e na máscara que encobre o ser.
Sua composição em sentido amplo - lato sensu é formatado a partir dos relatos históricos constitutivos, das narrativas individuais e homogêneas, irredutíveis, precursoras, decompostas em inassimiláveis diferenciações.
As lembranças são migratórias, imaginativas, construídas, reinventadas a cada instante, quando ainda presa ao corpo magro - essa carne sóbria, tangível e sem identificação, se encontra aprisionada a máscara - um o rosto alienado reproduzindo imagens personificadas em fatos fictícios.
A máscara é a península que esconde o corpo continental, cercado por outros seres desnudos de pureza, por onde pisam os coturnos soturnos em terras férteis - florestas de pertencimento colonial, celestial, colossal...
Visto que as cercas demarcam os latifúndios da existência limitando a linguagem, a borda imaginativa faz fronteira entre o suportável e o insuportável, o contato com a cerca de arame farpado fere e sangra o corpo, rasga a máscara, um corte no rosto... A perfuração dá abertura ao que está por trás do discurso – a silhueta do horror.
Sem redenção, sem o calor das cobertas de uma tarde fria, cinzenta, um corpo estranho sorrateiramente invade, uma certa doença, a paixão, um incomodo na alma chamado desejo busca repouso nesse mundo desassossegado, impondo ao axioma da vida - um notário registrador de sonhos.
Reinvento personagens a partir das memórias dos outros falantes, antepassados presentes, contos mórbidos genealógicos, antiquários discursivos, passagens paisagísticas que pairam sobre o pressuposto presente criado, perdido na quinquilharia do tempo.
A vida produz e reproduz imagens imaginativas, cativadas pela captação emblemática das memórias elásticas, impressas em rolos de negativos, repetidas vezes - de forma diferente. No encontro com as imagens construo personagens, nas linguagens destoantes que se cruzam em linhas periféricas para fora do pensamento flutuante, uma ligação orgânica com o mundo poético, percursos, andanças sem danças, rotas de fugas sem rugas, caminhos e rumos desenhados delicadamente, um camafeu de nozes, iluminuras pintadas em papel manteiga ilustrando cadernos pautados - em memória ao teatro do absurdo.
Um disparate, tangenciada pela concretude das palavras interpretadas a partir da leitura posterior, do que não foi observada à priori nas interpretações análogas.
Adentrando na unidade estética, um campo vasto da arte arqueológica do saber, os sentidos não encontram respostas palpáveis, por estar em transformação, transfiguração, juntamente com o mundo e os outros objetos geradores de ritos, simbolizando esse mundo.
A multiplicidade do discurso irredutível - não linear, da visão sintetizante dos fenômenos identificando suas representações, divisões arbitrarias do conhecimento, difusoras filosofias da linguagem anímica. O conhecimento perpassa pelas camadas do ato dramático, da trama em redes dissonantes, diálogos inventados dentro de uma vivência claustrofóbica.
O pensamento dobra a esquina da consciência, na ruptura do método formatado sobre a métrica condicional, a arte é expressa como forma interpretativa das alusões vivenciadas dando carne às ideias subjetivas, inclinações no eixo existencial em direção do mundo. O discurso não é semântico, impossível de significação, sendo assim, formata um lugar transitório em que o objeto ocupa, na ressonância da contravenção dos sentidos hermenêuticos e na ruptura dos sentidos condicionados.
É no limite da linguagem que o cercado obstrui o ser do real, um lugar que não está na realidade e que é insuportável, inabitável aos neuróticos.
A arte do psiquismo dá voz aos efeitos do impossível da subjetividade e não ao deciframento do impossível, eclode na gestação da obra, ecoa o nome próprio, no processo de um recontar antropológico, remontando histórias sobre si, construindo seu próprio mito a ponto de encontrar um lugar suportável para o desejo.
Estou exilado, fui expulso do paraíso simbólico, desse útero maldito, e continuo desejando o sol nascer.
Há de existir sempre algo que falta que não sei o nome, que me move... Uma mão sedenta repentina abrindo todas as janelas da casa.
Enquanto corro pela casa a morte não nos persegue, a vida é vida de desejo, e isso não me basta... Tenho fome, angustias e sono agora.
Transito entre os deuses do Olimpo ás entranhas da sarjeta, me deixem passar com minha estrofe - meu folhetim de anil...
Aprisionado pelo silêncio das imagens delirantes, aleatórios escapes de memórias obsoletas, tambores rufam alegoricamente acompanham a sonata de Wagner. Certamente de longe, onde a vista não alcança, é anunciada a ave da sentença breve que finda o dia.
Não sei ao certo, mas tenho a impressão de que meus pés descalços – tamanho, quarenta e um, não caminharão sobre o solo dessa terra até a velhice tardia, ainda que me sobrem dentes para comer as flores no inverno. O tempo talvez seja justo comigo, vou esperar o sol nascer...
- Quem dera fosse eu um germe - um embrião, a parte mais nobre do trigo que dá origem ao alimento, matando a fome dos famintos que vagam pelo deserto.
Pigmentos no tempo, manchas escuras, o movimento das nuvens na visão, moscas volantes por toda parte confundem meu raciocínio, os inúmeros projetos empoeirados, protótipos de uma razão parcialmente cega - fenômenos entópticos. É sabido que o fosfeno se apresenta aqui como um mecanismo de defesa diante dessa realidade insuportável fundando sintomas.
O sangue não circula mais na velocidade que deveria percorrer em meu corpo, sinto uma certa fraqueza, a fraqueza da vontade, nessa falta de sono em que meus olhos se abrem lentamente desgrudando os cílios da remela sólida do tempo anteriormente penado, penalizado pela cegueira desse quarto ilusório. Questiono minha revelia, na irredutível experiência com esse mundo que me dá sustento às pernas, onde me faço existir, no vórtice temporal, meu movimento de extração, do suprassumo das horas que me servem como composição da obra que escrevo, reescrevo, invento, reinvento, conto e reconto inúmeras vezes negando a intenção de ser quem sou quando não estou em mim, ou em você.
Na periferia dos meus pensamentos em expansão a razão se fragmenta, viajando por espaços inócuos da psicosfera.
O movimento anterior se fixava nos processos repetitivos, automaticamente viciados em soberbas alienações destrutivas, desgastavam as engrenagens do raio experiencial, retardando assim o despertar da eterna usura.
Com o esfarelamento da razão reato os meios, retalho a culpa original e a fantasiada de outrora - um doloroso corte do desejo inflamando corpo adentro.
A religação de crenças me salvaria permanentemente num curto processo de transformação - a redenção, do injustificável ao discurso aplaudido e mistificado em um ser santificado.
- Não! Eu não quero santificação, santidade ou sacrários, escapulários amarrados ao meu corpo, me colocando o peso da cruz nos ombros para que eu seja um bicho dócil e não vague pelo mundo feito um animal inundado de desejos impuros...
Desintegro o imperialismo matriz, desarticulo a arte codificada – formas pré-moldadas que não dizem nada sobre mim, reinauguro no discurso alguns fios condutores para entender meu processo, o que aparece para além de mim. São fios que tecem essa fala estética do sublime, linguística diacrônica, escalas diatônicas, bizantina - donde as imagens partem das ideias, não mais da observação platônica. Abstenho-me por hora de uma ideia central, funcional, mecanicista, metodológica e mercantilista.
Aprofundemos camada por camada, que surjam novos semblantes dos corpos meneando espaços ilógicos, nos coloquemos para fora de um tempo preciso, o alto renascimento – no cume da arte, na busca por uma visão mais completa do movimento com as coisas, na fusão e perfusão.
A decoupage da alma está na pele, na carne, nervos, ossos... Nas vísceras e na máscara que encobre o ser.
Sua composição em sentido amplo - lato sensu é formatado a partir dos relatos históricos constitutivos, das narrativas individuais e homogêneas, irredutíveis, precursoras, decompostas em inassimiláveis diferenciações.
As lembranças são migratórias, imaginativas, construídas, reinventadas a cada instante, quando ainda presa ao corpo magro - essa carne sóbria, tangível e sem identificação, se encontra aprisionada a máscara - um o rosto alienado reproduzindo imagens personificadas em fatos fictícios.
A máscara é a península que esconde o corpo continental, cercado por outros seres desnudos de pureza, por onde pisam os coturnos soturnos em terras férteis - florestas de pertencimento colonial, celestial, colossal...
Visto que as cercas demarcam os latifúndios da existência limitando a linguagem, a borda imaginativa faz fronteira entre o suportável e o insuportável, o contato com a cerca de arame farpado fere e sangra o corpo, rasga a máscara, um corte no rosto... A perfuração dá abertura ao que está por trás do discurso – a silhueta do horror.
Sem redenção, sem o calor das cobertas de uma tarde fria, cinzenta, um corpo estranho sorrateiramente invade, uma certa doença, a paixão, um incomodo na alma chamado desejo busca repouso nesse mundo desassossegado, impondo ao axioma da vida - um notário registrador de sonhos.
Reinvento personagens a partir das memórias dos outros falantes, antepassados presentes, contos mórbidos genealógicos, antiquários discursivos, passagens paisagísticas que pairam sobre o pressuposto presente criado, perdido na quinquilharia do tempo.
A vida produz e reproduz imagens imaginativas, cativadas pela captação emblemática das memórias elásticas, impressas em rolos de negativos, repetidas vezes - de forma diferente. No encontro com as imagens construo personagens, nas linguagens destoantes que se cruzam em linhas periféricas para fora do pensamento flutuante, uma ligação orgânica com o mundo poético, percursos, andanças sem danças, rotas de fugas sem rugas, caminhos e rumos desenhados delicadamente, um camafeu de nozes, iluminuras pintadas em papel manteiga ilustrando cadernos pautados - em memória ao teatro do absurdo.
Um disparate, tangenciada pela concretude das palavras interpretadas a partir da leitura posterior, do que não foi observada à priori nas interpretações análogas.
Adentrando na unidade estética, um campo vasto da arte arqueológica do saber, os sentidos não encontram respostas palpáveis, por estar em transformação, transfiguração, juntamente com o mundo e os outros objetos geradores de ritos, simbolizando esse mundo.
A multiplicidade do discurso irredutível - não linear, da visão sintetizante dos fenômenos identificando suas representações, divisões arbitrarias do conhecimento, difusoras filosofias da linguagem anímica. O conhecimento perpassa pelas camadas do ato dramático, da trama em redes dissonantes, diálogos inventados dentro de uma vivência claustrofóbica.
O pensamento dobra a esquina da consciência, na ruptura do método formatado sobre a métrica condicional, a arte é expressa como forma interpretativa das alusões vivenciadas dando carne às ideias subjetivas, inclinações no eixo existencial em direção do mundo. O discurso não é semântico, impossível de significação, sendo assim, formata um lugar transitório em que o objeto ocupa, na ressonância da contravenção dos sentidos hermenêuticos e na ruptura dos sentidos condicionados.
É no limite da linguagem que o cercado obstrui o ser do real, um lugar que não está na realidade e que é insuportável, inabitável aos neuróticos.
A arte do psiquismo dá voz aos efeitos do impossível da subjetividade e não ao deciframento do impossível, eclode na gestação da obra, ecoa o nome próprio, no processo de um recontar antropológico, remontando histórias sobre si, construindo seu próprio mito a ponto de encontrar um lugar suportável para o desejo.
Estou exilado, fui expulso do paraíso simbólico, desse útero maldito, e continuo desejando o sol nascer.
Há de existir sempre algo que falta que não sei o nome, que me move... Uma mão sedenta repentina abrindo todas as janelas da casa.
Enquanto corro pela casa a morte não nos persegue, a vida é vida de desejo, e isso não me basta... Tenho fome, angustias e sono agora.
Transito entre os deuses do Olimpo ás entranhas da sarjeta, me deixem passar com minha estrofe - meu folhetim de anil...