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DIÁSPORAS DE ABRIL - UMA REINVENÇÃO SEMIÓTICA DA RAZÃO

08:13:00

Um copo com água, um corpo com sede, a mão carcomida bate à porta, pede perdão, um drinque e um cigarro longo sem coesão, trocando em miúdos, partituras improvisadas pelo tempo que se desfazem em notas de contos musicais, a cada átomo de ideia precisa. 
Aprisionado pelo silêncio das imagens delirantes, aleatórios escapes de memórias obsoletas, tambores rufam alegoricamente acompanham a sonata de Wagner. Certamente de longe, onde a vista não alcança, é anunciada a ave da sentença breve que finda o dia. 
Não sei ao certo, mas tenho a impressão de que meus pés descalços – tamanho, quarenta e um, não caminharão sobre o solo dessa terra até a velhice tardia, ainda que me sobrem dentes para comer as flores no inverno. O tempo talvez seja justo comigo, vou esperar o sol nascer...
- Quem dera fosse eu um germe - um embrião, a parte mais nobre do trigo que dá origem ao alimento, matando a fome dos famintos que vagam pelo deserto.
Pigmentos no tempo, manchas escuras, o movimento das nuvens na visão, moscas volantes por toda parte confundem meu raciocínio, os inúmeros projetos empoeirados, protótipos de uma razão parcialmente cega - fenômenos entópticos. É sabido que o fosfeno se apresenta aqui como um mecanismo de defesa diante dessa realidade insuportável fundando sintomas.
O sangue não circula mais na velocidade que deveria percorrer em meu corpo, sinto uma certa fraqueza, a fraqueza da vontade, nessa falta de sono em que meus olhos se abrem lentamente desgrudando os cílios da remela sólida do tempo anteriormente penado, penalizado pela cegueira desse quarto ilusório. Questiono minha revelia, na irredutível experiência com esse mundo que me dá sustento às pernas, onde me faço existir, no vórtice temporal, meu movimento de extração, do suprassumo das horas que me servem como composição da obra que escrevo, reescrevo, invento, reinvento, conto e reconto inúmeras vezes negando a intenção de ser quem sou quando não estou em mim, ou em você.  
Na periferia dos meus pensamentos em expansão a razão se fragmenta, viajando por espaços inócuos da psicosfera. 
O movimento anterior se fixava nos processos repetitivos, automaticamente viciados em soberbas alienações destrutivas, desgastavam as engrenagens do raio experiencial, retardando assim o despertar da eterna usura.
Com o esfarelamento da razão reato os meios, retalho a culpa original e a fantasiada de outrora - um doloroso corte do desejo inflamando corpo adentro.
A religação de crenças me salvaria permanentemente num curto processo de transformação - a redenção, do injustificável ao discurso aplaudido e mistificado em um ser santificado.
- Não! Eu não quero santificação, santidade ou sacrários, escapulários amarrados ao meu corpo, me colocando o peso da cruz nos ombros para que eu seja um bicho dócil e não vague pelo mundo feito um animal inundado de desejos impuros... 
Desintegro o imperialismo matriz, desarticulo a arte codificada – formas pré-moldadas que não dizem nada sobre mim, reinauguro no discurso alguns fios condutores para entender meu processo, o que aparece para além de mim. São fios que tecem essa fala estética do sublime, linguística diacrônica, escalas diatônicas, bizantina - donde as imagens partem das ideias, não mais da observação platônica. Abstenho-me por hora de uma ideia central, funcional, mecanicista, metodológica e mercantilista. 
Aprofundemos camada por camada, que surjam novos semblantes dos corpos meneando espaços ilógicos, nos coloquemos para fora de um tempo preciso, o alto renascimento – no cume da arte, na busca por uma visão mais completa do movimento com as coisas, na fusão e perfusão.
A decoupage da alma está na pele, na carne, nervos, ossos... Nas vísceras e na máscara que encobre o ser.
Sua composição em sentido amplo - lato sensu é formatado a partir dos relatos históricos constitutivos, das narrativas individuais e homogêneas, irredutíveis, precursoras, decompostas em inassimiláveis diferenciações.
As lembranças são migratórias, imaginativas, construídas, reinventadas a cada instante, quando ainda presa ao corpo magro - essa carne sóbria, tangível e sem identificação, se encontra aprisionada a máscara - um o rosto alienado reproduzindo imagens personificadas em fatos fictícios. 
A máscara é a península que esconde o corpo continental, cercado por outros seres desnudos de pureza, por onde pisam os coturnos soturnos em terras férteis - florestas de pertencimento colonial, celestial, colossal... 
Visto que as cercas demarcam os latifúndios da existência limitando a linguagem, a borda imaginativa faz fronteira entre o suportável e o insuportável, o contato com a cerca de arame farpado fere e sangra o corpo, rasga a máscara, um corte no rosto... A perfuração dá abertura ao que está por trás do discurso – a silhueta do horror. 
Sem redenção, sem o calor das cobertas de uma tarde fria, cinzenta, um corpo estranho sorrateiramente invade, uma certa doença, a paixão, um incomodo na alma chamado desejo busca repouso nesse mundo desassossegado, impondo ao axioma da vida - um notário registrador de sonhos. 
Reinvento personagens a partir das memórias dos outros falantes, antepassados presentes, contos mórbidos genealógicos, antiquários discursivos, passagens paisagísticas que pairam sobre o pressuposto presente criado, perdido na quinquilharia do tempo.
A vida produz e reproduz imagens imaginativas, cativadas pela captação emblemática das memórias elásticas, impressas em rolos de negativos, repetidas vezes - de forma diferente. No encontro com as imagens construo personagens, nas linguagens destoantes que se cruzam em linhas periféricas para fora do pensamento flutuante, uma ligação orgânica com o mundo poético, percursos, andanças sem danças, rotas de fugas sem rugas, caminhos e rumos desenhados delicadamente, um camafeu de nozes, iluminuras pintadas em papel manteiga ilustrando cadernos pautados - em memória ao teatro do absurdo.
Um disparate, tangenciada pela concretude das palavras interpretadas a partir da leitura posterior, do que não foi observada à priori nas interpretações análogas.
Adentrando na unidade estética, um campo vasto da arte arqueológica do saber, os sentidos não encontram respostas palpáveis, por estar em transformação, transfiguração, juntamente com o mundo e os outros objetos geradores de ritos, simbolizando esse mundo.
A multiplicidade do discurso irredutível - não linear, da visão sintetizante dos fenômenos identificando suas representações, divisões arbitrarias do conhecimento, difusoras filosofias da linguagem anímica. O conhecimento perpassa pelas camadas do ato dramático, da trama em redes dissonantes, diálogos inventados dentro de uma vivência claustrofóbica. 
O pensamento dobra a esquina da consciência, na ruptura do método formatado sobre a métrica condicional, a arte é expressa como forma interpretativa das alusões vivenciadas dando carne às ideias subjetivas, inclinações no eixo existencial em direção do mundo. O discurso não é semântico, impossível de significação, sendo assim, formata um lugar transitório em que o objeto ocupa, na ressonância da contravenção dos sentidos hermenêuticos e na ruptura dos sentidos condicionados. 
É no limite da linguagem que o cercado obstrui o ser do real, um lugar que não está na realidade e que é insuportável, inabitável aos neuróticos. 
A arte do psiquismo dá voz aos efeitos do impossível da subjetividade e não ao deciframento do impossível, eclode na gestação da obra, ecoa o nome próprio, no processo de um recontar antropológico, remontando histórias sobre si, construindo seu próprio mito a ponto de encontrar um lugar suportável para o desejo.
Estou exilado, fui expulso do paraíso simbólico, desse útero maldito, e continuo desejando o sol nascer. 
Há de existir sempre algo que falta que não sei o nome, que me move... Uma mão sedenta repentina abrindo todas as janelas da casa. 
Enquanto corro pela casa a morte não nos persegue, a vida é vida de desejo, e isso não me basta... Tenho fome, angustias e sono agora. 
Transito entre os deuses do Olimpo ás entranhas da sarjeta, me deixem passar com minha estrofe - meu folhetim de anil...

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