BAIXIO ÁRIDO DO CANCIONEIRO LIVRE
10:09:00
Cortam-se os cordões e as amarras amais trazendo a paz que nunca sentira antes...
Desamordaçamos as bocas para o grito, o seio para o leito, do leite para as entranhas.
Do vômito minha imagem nova, pavorosa, nua e crua.
Contam-se dias após os outros, o porvir ressoa num tempo marcado por seus exageros, carregado por expressões indefiníveis, dos rompantes corpos diluídos a um provável caos semiótico, um caos em seu estado líquido e turvo. O volume dessa liquidez é ampliado irresponsavelmente, de forma que a repressão social esbarra na borda onde parasitam as sobras traumáticas – sujeiras grudadas na tela do ralo psíquico, resultando um estado caótico e paralisante das ações do ser. Atravessado pelo corpo semiaberto, a sensação é de inexistência, invisibilidade e vulnerabilidade às pragas dessa densa modernidade morna. A meu ver, parece-me que a dinâmica é migratória, se movimentando para uma breve desocupação, desapropriação de si, resultando no esvaziamento ambíguo das relações interpessoais.
Esvaziado, o ser se percebe em si, e novamente se espanta buscando a cura na doença, mesmo se dando conta que o jogo presencial em que faz parte busca a qualquer custo o gozo, e esse gozo é uma realização imperialista da alteridade em que a mesma é sustentada pela prerrogativa neocolonialista. O gozar em sociedade consiste então, na contaminação performática da felicidade de consumo e na distribuição de poder e verdade do mito.
A voz anterior e rouca é esquecida em algum recanto mnêmico, os discursos breves ao vento não trazem mais quaisquer reflexões, o tempo anda sem tempo algum e o brio se perdeu em algum lugar do passado.
Desperdiço a sonoridade e as entonações destoantes, extraviando velhos discursos, como se nunca tivesse existido um destinatário concreto.
São ardilosas as horas que conto entre os dedos trêmulos, engaveto poemas, coleciono figurações melancólicas, observo os olhares das pessoas e remarco com tinta fresca e barbante um amontoado de sons e silêncio.
Um gole com gosto de árbol colonial, meu lamento genealógico debruçado na inquietude ébria do que represento e sou. Um luto vertiginoso e poético que passeia livremente ao arauto de cada manhã, desnudado e cansado desmorono entre o fim da tarde e o tombante escurecer da noite.
Eu, um cancioneiro fazedor de iguarias, me vendo diferente desse vulto que passa apressado por mim sem acenar, diante dessa imensa galeria de vidros, refletido na opacidade da vitrine, sal para os meus olhos, pimentas para o teu lamento tardio.
Eu que tanto bocejei o aroma de jasmim, dei risos de anil estrelado por aí, agora morro de sede, consternado, sem teus antigos beijos.
Mulher com gosto de chá, capim verde limão!
Tomate sem pele e sem sementes, descalçada, sem sandálias, estéticas sintéticas...
A margem da loucura exigiu de mim um esforço maior, a distorção da sanidade me vestiu de palhaço pra alegrar nosso passeio público na multidão.
Doces bárbaros!
Falei o quanto corroído eu me encontrava e ninguém deu ouvido. Que eu não iria chegar a tempo de acompanhar a procissão dos compungidos coroados, pelo simples fato de estar fingindo, por estar tingido de cores brutais e por isso, falhei. Falhei diante dos transeuntes, abandonado fiquei e me perdi, fui esquecido diante do deus dos homens ao dizer adeus, ao sair sem consolação e sem avisar, por não acreditar na sorte nem tão pouco em paraísos artificiais.
Eu, um farrapo grudado na malha das emoções fúteis, frutificado nas fantasias estéreis, do que nunca existiu, me dei conta que não havia estória alguma pra contar.
Entre as sombras das peças que criei, esqueci por vários instantes que tudo não havia passado de um desejo infantil, anterior ao que me apresentava agora, ou não, o que está em voga nesse momento é que de fato as representações figurativas eram opostas a ausência que sentia sobre as flutuações abstratas e que concatenavam em meus pensamentos mais profundos e oblíquos.
Em face dos olhares perdidos do tempo retorno a mesma imagem inicial, na galeria de arte, da arte desgastada e carcomida pelo esquecimento, desprezada por essa gente descuidada, sem zelo e que não respeita a arte como ela se apresenta e afeta o entorno, por causar estranheza.
Diante da realidade o que havia era ausência de pessoas, e isso se apresentava de forma sintomática, como quando sua imagem repentinamente desapareceu num apagão, ao sabor da antimatéria, no qual despencava lentamente sobre as ferragens frágeis da estrutura vertical. Na dissolução dos fatos ordinários que causaram escassez de elementos, um conjunto de peças para a construção de um desejo concreto que havia sido idealizado anteriormente, no autorretrato, nos autos retratados.
Minha existência é um barrote, bodoque modelado levemente sobre as mãos pequeninas do pixote, esse pixote também sou eu - meu teorema, assim como as inúmeras pinceladas de tons mundanos e carnais, inundado de mim, derramado em mim, bocejado e sonolento nessa cama improvisada sobre o assoalho úmido da sala.
Na tortura tonteante dos longos dias tenros a sensação de esgotamento, uma aparente repetição sintomática da melancolia. Lacrimejado e casualmente debruçado sobre inúmeras páginas poéticas – amareladas, dentro da casca em que faço morada. Na leitura de certos versos, verões, não haverá. A atmosfera ferida, tão densa quanto minhas parábolas filosofais.
De visão embaraçada, as caricias sobre o peito de outrem me embalsamam de fragrâncias florais. Relembrando a boca da bendita, cheia de versos cruéis, releio seus lábios ao bafo da solidão, embolorado entre a boca e a língua, na mais pura e densa mágoa que arde por dentro e que escapa descanso por hora na espeça mata cinzenta da angustia. Roído e tolhido dessa angustia, engatilhado sobre a mira do tambor chamado temor, as sobras são miragens, derradeiros vestidos da existência, me dispo do espírito e do espirro um claro ato escandaloso.
Escarnio vivificante das tuas memórias atrozes, tônicas anacrônicas. Nebulosos vestígios de tua pessoa, humana, mumificada. Passeavas exuberante por fora de mim, desumanizada - transpassada, um tipo aberrante que se desequilibra na malha de existir apenas em si mesma, gradativamente reagindo aos reflexos do que o mundo lhe causara, na esfera veloz em que gravitas nesta vida primitiva.
Vi de longe as unhas lascivas dos dedos das mãos da fera que te tornara a loba feroz que rasga agora o concreto em processos alquímicos e simbólicos. A grande obra que transformou a borda sólida em grãos de areia, e que hoje retornam a praia mansa e se ramificam em asfaltos para a tua rua.
Da fome o desespero de quem não quer mais sobreviver, onde a feiura que reluz cega e faz morada, um cata-vento esquecido no quintal, lugar onde não me reconheço mais. Obrigo-me a mudar cada vez que não me vejo em mim.
Fragatas são mais frágeis que o meu coração cansado, repetidas sonatas de tristesse ao fim dessa tarde, corro o mais rápido que as pernas podem alcançar para me salvar da falta do abraço, em verossímil velocidade dos pensamentos, descalcificado, esfarelado no vento, partido e desfiado em retalhos miúdos me refaço sem nó.
Na cadência ancestral que me cabe, apenas essa paisagem crua me veste, da janela emoldurada num vagão vazio, o que restou fora apenas um vão entre nós e uma tonelada de papéis em branco retratando a criminologia dos amantes.
Nem mais um gole de vinho, nem tão pouco um maço de cigarros para aliviar o embalo íntimo das minhas fantasias.
Por ora o simples gesto de mexer-se parece brutal, quase que insuportável diante do que as representações provocaram, entre as múltiplas dores, a impotência de transitar na rodovia social dessa massa fermentada.
Talvez sejam apenas tolices, e tolices são navalhas desse discurso de massa, estáticos organismos assolados pelo poder hemisférico da linha imaginária, dessa aldeia cheia de critérios abusivos.
- E tu, mulher pretérita que tanto se achou mais que perfeita!
- Que foste tão solitária para me compadecer de tal engano e tão solidária aos teus tantos homens...
- Agora berra me cospe a face e parafraseia infâmias por aí, fazendo do inconsciente um projeto inconsequente que tu mesma criaste!
- Ainda há quem diga que agora andas por aí vestida de mortalha, cheia de rendas. Viúva chorosa, sem grinaldas, sem flor de laranjeira, distraindo com tua dor quem passa e quem fica.
- Uma orquídea nauseada, isto é o que representas!
- Um arquétipo caído num recanto escuro, compungida alvorada.
Tamanha era a minha fome nesses últimos dias equiláteros, solúveis aos meus signos indecifráveis, coagulado nas memórias, as que quero preservar. São imaginativas, simbólicas, sem simetria nesse mundo real...
Certamente com a salvação da amnésia chegaremos ao final das imagens ilusórias, vívidas em linhas paralelas, dessa simbiose primária onde estávamos contidos, num curto espaço de tempo.
Estarei certamente condensado na próxima estação derradeira, derramado na cura da doença, desmamado em meu nome próprio.
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