A CASA MORTA - PALAVRAS AO PAI

11:12:00

Existia uma casa com muitas janelas, um passeio turvo. Morava nessa casa uma criança parada de chinelos amarrados aos tornozelos, de passos curtos e que desejava andar por aí sentindo a terra entre os dedos dos pés. Assim, desaparecendo num ato escondido, em cada cor, acompanhado por passos transbordados de palavrões, gritos e silêncio. 
Lá fora, dessa casa - agora morta, um par de olhos arredondados perseguiam atentamente cada movimento do mundo e os passos dessa gente solta pelas ruas, enquanto a gigante, ave de rapina, apertava minha mão suada deslizando entre meus pequenos dedos antigos, rebocado, sendo puxando aos gritos dessa mulher, para correr, sem a menor paciência. Certamente rompíamos a membrana do tempo em atraso... Ao fim, eu não poderia me sentir perdido ou gasto, sem a legitimação prescrita na lei patriarcal, nada que não estivesse programado por ela – a lei. Era de valia, mesmo com todas as cores decorrentes em fusão, tantas imagens revelada ao mesmo tempo, causando em mim angustia, medo e tremor nas pernas. 
Despretensiosamente as coisas me pareciam estáticas, paradas nas horas do tempo...
O tempo que não quero sentir, mas chega bem devagar, o suficiente para me formigar os braços até chegar as pontas dos dedos e tremular meu corpo inteiro – onde o passado não me cabe mais no corpo de hoje.
O que existia era essa casa virada para a rua e com os números caídos do lado de fora, desenhado quatrocentos e um na parede. 
Era uma dessas casas cinza em que morei. Meus olhos de dentro da casa acompanhavam por entre as venezianas "amarronzadas" as rodas dos carros nas poças de lama, da água da chuva e as crianças que brincavam descalçados entre calçadas e azulejos escorregadios.
Tem cheiro de madeira molhada, enquanto a chuva que cai la fora me faz recordar o sabor da tinta fresca, borrada perto da boca.
Nessa casa não se podia fazer barulho, para não acordar a mulher que dorme na rede depois do almoço, nem tampouco eu poderia está do lado de fora correndo descalço com os outros. Realmente, “não se pode ter tudo que se quer...” e até gosto dessa frase, mas eles não deveriam ter me tirado o direito de sonhar enquanto pequenino, me fazendo desacreditar que lá fora existia bondade e o que percebia era que aqui dentro também existia mais maldade que lá fora. Enquanto a ladainha continuava sobre os falsos moralismos pregados, eu não podia questionar argumentar sobre o que discordava tamanha eram as falácias! Que amigos são os que hoje sinceramente não quero estar por perto por morarem nessa casa repleta de horror, e que o valor que se tem no bolso é o preço que estarei valendo para as pessoas. 
Flutuar em pensamentos era algo que quase sempre era repudiado na casa, sonhar alto e recitar meus desejos e fazê-los ecoar pela casa? Capaz! Eu poderia ser no mínimo penalizado por DEUS ou por minha DONA SINHÁ.
Existia uma casa cheia de sons que só se silenciava quando a maldita dormia. Minhas pernas curtas corriam pelo corredor até se cansarem. Era quando ela fechava os olhos que eu esquecia meus chinelos em qualquer lugar e corria para o quintal, para sentir a areia nos pés, onde escondia os dedos e sentia um curto prazer de estar livre, parecia uma planta no meio do quintal com os dedos fincados na areia, talvez, até sejam minhas verdadeiras raízes.
Era lá, nesse quintal, e em tantos outros que já morei que conversava assobiando com os pássaros engaiolados e com meus amigos imaginários, lugar onde procurava tesouros escondidos, material de sobra para minha coleção de quinquilharias, mas tinha que correr e guardar tudo, muito bem escondido para não ser repreendido, por colecionar tralhas. 
Subia pelo muro, caminhava sobre as telhas da casa, deitava e ficava olhando o céu, contando ideias, escondendo meus tesouros. 
Garimpava por todo quintal até chegar ao muro que dá num outro quintal, era lá que jogava as cordas que me açoitava o corpo, caiam sempre numa piscina em ruínas e sem água, era lá que eu escondia a coleção da mulher que me chama de filho. E na volta pra casa, quase escurecendo, eu jogava frutos para o alto e brincava com os morcegos que buscavam qualquer coisa que eu jogasse para o alto, até ouvir os gritos da mulher que me procurava pela casa, continuava correndo adentrando pela cozinha. Às vezes corria o mais rápido que podia e me escondia debaixo da cama, todo suado e sem camiseta, sem chinelos e com o corpo todo sujo da areia escura do quintal. Ficava ali embaixo da cama empoeirada, meu corpo magricelo respirava devagar na tentativa de não ser notado, mas meu coração sempre disparava mais alto quando via seus pés se aproximarem. O maldito medo me denunciava quase sempre.
Bola de meia, escondida dentro do calção sem cuecas aguardando os jogadores que nunca chegavam… mas, onde estavam meus irmãos?
A voz dialogada não se podia ter, pois, de veras calado, errado ainda estaria - dizia a megera, que rasteja pela casa, bem como outra de suas frases repetitivas que parafraseava a anterior, “calado ganha Cz$ 1,00 (um cruzado), falando acaba apanhando”. 
Ela, essa mulher sedenta por ter o domínio sobre seus homens fracos – mas eram apenas três crianças e um bêbado covarde e ausente!
A ditadora se farta em pratos cheios, e de tão faminta, a Maria louca se cansava de si mesma, ela no centro da casa. Sua própria sujeira se espalhava pela casa, assim como seus fios de cabelos, eram serpentes soltas pela casa. 
Aquela altura gigantesca e seu olhar de górgona sedutora petrificavam os vizinhos e tantos outros, médicos, policiais e motoristas de ônibus de numeração 73, enquanto isso, os alcoviteiros me enchiam a boca de tapioca caseira e café forte achando que eu não entendia nada, por eu ser apenas uma criança calada. 
O grito dessa mulher sem razão e toda sua histeria eram tão estridentes aos meus ouvidos que atravessavam as paredes do quarto, meu coração mais uma vez disparava.
Eu não conseguia ouvir ao certo suas palavras, mas sentia que os passarinhos presos no quintal se entristeciam, assim como tudo que por perto era sensível corria e fugia de sua presença… 
Era assustador de fato, eu sei.
As crianças acordavam atordoadas sem saber o que estava acontecendo, ninguém entendia o porquê daquela fúria constante, além do que, só conseguíamos ir pra rua e ver o mundo lá fora, ao cair da noite, na busca do pai, e resgatá-lo de algum inferno. Talvez ele não quisesse voltar pra casa depois do trabalho, desconfio que seu prazer estivesse em sentir o verdadeiro desprezo de sua mulher.
Existia em cada uma dessas casas, cordas e cintos pendurados nos armadores, já deve ter se apercebido, inclusive, que tem um rei dissimulado e fraco, e tem também uma rainha perversa e agressiva, ambos adoecidos, e dessa doença não quero me contaminar, por isso fugi e continuo em fuga.
Deixo-te então declarado, não vou mais te resgatar dessa casa morta, não quero mais, não posso, não vou, não quero!
Existiam várias casas com a cor da lembrança que eu não mais preciso ter.

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